Era uma vez...

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O Jantar Chinês de Maria Ondina Braga



Não sei se os meus amigos já ouviram falar do Porto Interior de Macau. É como se fosse uma ou­tra cidade a balouçar no rio das Pérolas. Barcos pe­quenos e barcos grandes, ali, imensos, muito chegados uns aos outros, e as pessoas que lá vivem avançam de barco para barco como nós passeamos pelas ruas. Os barcos pequenos chamam-se sam-pans, que quer dizer três-tábuas, onde se abrigam famílias inteiras, e estão presos com varas de bam­bu enterradas na lama para que os ventos do tufão não os afundem. E os grandes, chamados juncos, são os que vão à pesca.
Ora bem, quando eu vivi em Macau, há mui­tos anos já, nos sam-pans amontoavam-se adultos e crianças quase uns por cima dos outros. E os juncos que, embora fossem barcos de pesca, serviam tam­bém de casa aos pescadores, eram conhecidos por fân-suins, e tinham largueza.
Nesse tempo, no entanto, em Macau, todos os barcos navegavam à vela. Velas de pano remen­dado, cor de ferrugem, cor de lodo e até pretas. De qualquer modo, bonito ver essas velas desfraldadas que pareciam leques gigantes, rio fora, até ao meio do mar. Uma vista verdadeiramente extraordinária, sim, o Porto Interior, mas com um ar de velhice e de pobreza. Que nos dias de hoje é diferente. Hoje em lugar de velas, os barcos, têm máquinas a va­por.
Lembro-me de que me vieram lágrimas aos olhos, na primeira vez que visitei esse porto de abrigo.
Numa pequena embarcação, junto ao cais, uma velha muito velha, com um menino ao colo, chupava um comprido cachimbo de água. Subiam rolos de fumo de minúsculas chaminés de lata. Num junco, ao largo, salgava-se peixe. E então um barco-loja carregado de mercadorias: sapatos de pano, te­cidos, tachos, tigelas, bules para o chá, cestos de palha de arroz, chapéus de fibra de bambu. Barco, portanto, para fazer negócio. E para que a gente do rio não precisasse de ir à cidade comprar o que lhe fazia falta. Também outro barco, este, restaurante, a cheirar a banha de porco, a picantes e a fritos. E à proa um chinês gordo a mexer com um pau novelos de massa, que em chinês se diz min, e que fer­viam num caldeirão com chouriço-china. Era a sopa-de-fita, a sopa-de-longa-vida, que até continha miúdos de galinha ou de pato. Esse barco-restaurante movia-se igualmente entre os outros, servindo, de onde em onde, por sobre a amurada, uma tigela de canja. Ou arroz chau-chau. Ou um frasco de tau-fu-mui, a que os portugueses chamavam queijo chinês. E cartuchinhos de iau-ii, choco frito com piri-piri, ainda quente, e uma colherada de molho.
Foi então que descobri, aninhado à ré de um sam-pan, um menino a desenhar com um pincel fino os caracteres da sua língua. Entardecia. O sol poente punha na cabeça do rapazinho uma chama de ouro.
Atravessei, pois, uma prancha e, em seguida, vários barquinhos, até chegar perto dele. Atento ao trabalho, porém, ele não deu por mim. A água ma­rulhava à nossa volta, escura, limosa. Uma mulher, a dona do barco em que eu me quedara, perguntou-me:
- Que quer daqui?
Tinha uma cara larga, castanha, mal-humorada.
Mostrei-lhe uma moeda:
- Vende-me esse periquito?
Foi a primeira coisa que me lembrou. Recea­va que ela me mandasse embora e não queria, de modo algum, partir sem falar com o pequeno.
A verdade é que eu o conhecia do colégio. Pertencia à escola masculina, chamava-se Yu, que em português significa jade, uma pedra oriental muito preciosa e de cor verde.
A mulher abriu os lábios grossos num sor­riso:
- Com certeza!
Estendia a mão para o dinheiro. Escancarou depois a gaiola de vime, tirou o pássaro, entregou-mo.
O bichinho, assustado, tremia na palma da minha mão, sem tentar fugir.
Súbito, um barco, chocando com o nosso, fez-me desequilibrar. Abracei-me à mulher que ria. O passarinho, esvoaçando, foi pousar no ombro do rapaz, no barquinho ao lado.
E Yu viu-me.
- Sim-sam — gritou (sim-sam quer dizer «professora»).
E no seu português meio chinês, perguntou-me o que é que eu fazia ali.
- Vim ver-te! — respondi.
Yu mostrou os dentes todos num jeito de agrado.
- Oh, entre para a nossa casa! Para que com­prou a A-Mui o periquito? Eu podia dar-lhe um.
Começou a mostrar-me o barco. Ao centro, debaixo da cobertura de colmo em forma de túnel, o quarto dele e do avô. À proa, a cozinha, a capoei­ra com duas galinhas, uma gaiola de periquitos, um canário, o casinhoto do cão. À ré, o lugar onde ele estudava e onde recebia as visitas. O sam-pan inteiro não tinha mais de três metros. A mobília do quar­to de dormir era uma esteira no chão. Na sala das vi­sitas havia um banquinho de bambu onde Yu me convidou a sentar.
Entretanto a noite caíra. Yu apressou-se a acender o candeeiro de querosene e a ferver o chá. Falava sempre: que surpresa! O avô devia estar a chegar e ia gostar de me ver ali.
Enquanto a água aquecia, chamou o cão e obrigou-o a fazer habilidades diante de mim. De­pois, voltando ao periquito:
- Comprou-o caro, não? A-Mui só quer di­nheiro. Tem gaiola para ele? Posso fazer-lhe uma. Gosta de cana ou de fibra de palmeira?
- Como quiseres. Igual à tua, que é bonita. Eu pago-te.
- Ora, eu não sou como A-Mui...
Baixou a voz. A nosso lado, a vizinha, debru­çada do barco, lavava na água turva o arroz do jan­tar num cesto de palha fina.
O pequeno foi guardar a minha ave na gaio­la dele, para que não fugisse. Em seguida apurou o ouvido.
- Oiço a campainha do sam-lun-ché do avô.
Sam-lun-ché é um meio de transporte usado em Macau e puxado por um chinês numa bicicleta com três rodas.
Eram horas da ceia. Yu disse:
- Sim-sam, janta connosco, sim?

E logo o avô apareceu. Este também era do meu conhecimento. Quantas vezes não me levara ele a dar uma voltinha nas noites de estio? Era um ve­lho alto e magro, de cara e cabeça sem pêlo, boca larga, maçãs do rosto quadradas, gestos ágeis como se fosse jovem.
Ao ver-me, o velhote mostrou-se ainda mais espantado do que o moço.
- Sim-sam aqui?
O melão da sua cabeça subia e descia em cum­primentos:
- Yu! Não sabes como se recebem as pessoas?                                                                                        

O moço foi buscar o incensador.
O ancião desculpava-se:
- Cheira a sujo... Maré baixa. Muita popu­lação.
Dentro em pouco o perfume purificava o ar e tomávamos chá.
O incensador era um Buda de grés, e o fumo aromático passava por debaixo das pernas dobradas, gordas, do deus que tinha as mãos pousadas nos joelhos.
O velho foi à cozinha.
Do banquinho onde estava sentada descobri, no teto do quarto de dormir, um Cristo de barro.
- É teu, Yu?
- Sim, é meu. Fui eu que o fiz.
O avô voltava com um tabuleiro com três ti­gelas de arroz, hortaliça cozida, um ovo na minha tigela.
Os dois sentaram-se no chão.
- Cozo sempre a arroz de manhã, antes de ir para o trabalho — explicou o avô — e agora é só aquecê-lo. Quanto à hortaliça, são rebentos de bambu. Cinco minutos abafados para ficarem tenros.
- Por que gastou um ovo comigo? — per­guntei. — Vim dar-lhe despesa.
- Oh, não! Para que queremos as galinhas se não para as visitas ou para os dias de festa?
A Lua subia por trás das ilhas da China.
O rosto de Yu e do avô pareciam talhados em marfim.
O canário começou a cantar. Era um som sua­ve e trémulo a que se juntava outro, também deli­cado, de mulher, algures.
- Nunca comi tão bem na minha vida, ami­gos! — disse eu, ao terminar.
Eles sorriram, mudos.
Os meus pés calçados tocavam com intimida­de os pés deles, nus e cruzados, como o Buda.
O perfume do incenso enchia tudo. Parecia que a própria Lua o aspirava, encantada.
Yu levantou-se, foi pôr mais arroz numa tigela, chamou o cão, deu-lhe de comer.
O velho sorvia goladas de chá. Oferecia-me mais. Era chá de jasmim.
- Yu — chamei —, guarda o periquito para ti. Só o comprei para poder chegar até aqui, afinal.
Oh, não, sim-sam. Vou fazer-lhe uma gaiola e levo-lho qualquer dia dentro dela.
O avô aprovou. Era bom ter asas em casa. Um passarinho dava sorte.
A lua, agora dourada, boiava no chá, resplan­decia nos últimos fumos do incenso, brilhava nas faces pálidas de Yu e do avô, transformava as cinzen­tas águas do rio num lago de luz.
                          (in O Jantar Chinês e Outros Contos, Caminho)

  A Esquina - um conto de Ondjaki



"Em [...], numa data social em que a vida por si só se tornou difícil e azeda, um homem de meia-idade inventou uma profissão para si mesmo. No sorriso da sua descoberta, pintou de verde-escuro um banco pequenino, passou a manhã esperando que o sol ausente o secasse com a temperatura possível. Engomou o fato castanho e escolheu aleatoriamente uma das muitas esquinas da cidade. Num cartão pequeno escreveu à máquina: "tiram-se dúvidas".

Resistiu pacientemente aos primeiros vinte e três dias em que ninguém caiu na tentação de lhe fazer uma pergunta que fosse. É sabido que as pessoas paravam para ler o cartão, e que sorriam ou  acenavam, cumprimentando-o. Está escrito que ele ripostava com a agradabilidade do seu sorriso curto, cordial, calmo.  No vigésimo quarto dia uma criança sentou-se no chão ao pé dele. Ao fim de algum tempo, sorriu. O homem também sorriu. A criança, miopemente, soletrou com a boca e os olhos: ti-ram-se dú-vi-das... Fechou o seu sorrisinho e olhou-o intrigada. Quando se preparava para murmurar algo, ou quando o homem se preparava para murmurar algo de volta, um senhor prostrou-se em frente ao banquinho, à mesinha, à criança, aos seus sorrisos parecidos.

Não havia preços. O certo é que a criança todos os dias sentava ali, o homem todos dias lá ia, as pessoas apareciam com mais frequência. A esquina ficou conhecida como esquina da dúvida, onde ainda hoje todos os cafés tem pinturas ou esculturas do homem, o banco, a mesa, o cartaz e a criança ao lado - no chão.

Se chovia retiravam-se para um parapeito. Se fazia vento aconchegavam as pernas um no outro. De longe, o que se via era o sorriso calmo, cordial, curto do homem intercalado com palavras poucas, mansas. As pessoas sorrindo se afastavam.

Numa tarde fria, bela, chegaram a acumular-se três pessoas para tirarem dúvidas. Quando o homem disso se apercebeu, enternecido, olhou a criança. A criança, supreendida com aquele olhar extenso, olhou o cartaz. Soletrou mais alto do que da primeira vez, para que todos na fila ouvissem: ti-ram-se dú-vi-das...

O tirador de dúvidas afagou o menino. Disse-lhe um segredo: dúvida é quando não sabemos bem alguma coisa. O menino enxugou o ranho transparente do seu lábio, sorriu, procurou a orelha peluda do homem: dúvida é amanhã?

Mãos dadas, dúvida virou nome de esquina."
ONDJAKI, E se amanhã o medo, Caminho

A INFINITA FIANDEIRA - um conto de Mia Couto
 
A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatias funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.
— Não faço teias por instinto.
— Então, faz porquê?
— Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
— Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
— Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
— Estamos recebendo queixas do aranhal.
— O que é que dizem, mãe?
— Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
— Vai ver que custa menos que engolir mosca — disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada., se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
— Faço arte.
— Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos — chamados de obras de arte — tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

MIA COUTO, O Fio das Missangas, Caminho